“Cantar é próprio de quem ama”, diz Santo Agostinho
Às vezes, quando estou no ônibus, olho pela janela e observo os carros e as pessoas que lá estão, cantando com tanta espontaneidade; não raro, acompanhando a música com o balanço da cabeça ou marcando o ritmo com as mãos ao volante. Às vezes, observo os adolescentes sentados perto de mim, com seus fones e celulares, ouvindo música e movendo os lábios mesmo sem emitir som nenhum. Então, lembro-me dessa frase desse santo e doutor da Igreja.
Quem se apaixona sente vontade de cantar, emociona-se com a letra de uma canção por mais piegas que possa parecer aos críticos musicais ou literatos. Os casais apaixonados tem as suas próprias músicas, as quais expressam seu amor de forma única, como uma senha, um código, uma identidade. Frequentemente, associamos canções a momentos das nossas vidas ou relacionamos musicas com pessoas que conhecemos. Então, quando encontramos esse alguém dizemos: “Outro dia, ouvi uma música que sempre me faz lembrar você!”. Os pais cantam para seus filhos recém-nascidos, para que eles possam ouvir o seu amor, tanto quanto podem vê-lo ou tocá-lo. Quem ama sente o impulso de cantar o seu amor.
O amor tem inúmeras características, e a principal delas é que todo amor quer comunicar algo. Na verdade, quer mais até, quer “comunicar-se”, traduzir-se, fazer-se ouvir e entender. Amor mudo e sozinho não é amor, é simulacro do amor. O amor é sempre um sair daqui e ir para lá, lá onde está o outro. Sair de mim para chegar ao outro. Todo amor é ponte. Por isso, todo amor é diálogo, nunca monólogo.
O músico cristão vive sua vida a partir dessa verdade, o que é ainda mais extraordinário. Todo músico cristão quer cantar, porque ama. Mas o que ama o músico cristão?
O próprio Santo Agostinho, em outra frase (e é bom de frase esse santo!), revela-nos: “Todo homem é aquilo que ama”. O bispo de Hipona, na Argélia, mesmo numa afirmação, convida-nos a refletirmos: “O que ou quem amamos?”.
Com certeza, aí cabem inúmeras experiências e percepções. Listá-las ou valorizar mais algumas em detrimento de outras é enfraquecer a alma e o coração humano. A fé é uma experiência essencial e existencial. Abrange tudo o que somos e vivemos. Cabe no canto e na voz do músico cristão tudo o que cabe no seu coração e na sua vida, se o Espírito Santo sobre tudo lançar Sua luz.
Sob a luz do Espírito podemos confessar nossos pecados, louvar ao Criador, depositar em Suas mãos nossas dúvidas, estender ao irmão nossa solidariedade. Sob a luz do Espírito Santo nada do que é humano lhe é indiferente, menor, sem importância. O músico cristão precisa sempre se interrogar sobre o seu canto, sua vocação, e sobre o que ou quem sustenta esse canto. Nisso repousa a reta intenção do músico e sua abertura à unção de Deus. Seu canto serve a Deus ou serve-se de Deus? Ainda nos fala sobre isso o próprio Santo Agostinho: “Buscas a Deus na Igreja ou busca a si próprio?”. Nosso canto é ponte para o outro (mesmo que este outro seja Deus) ou uma escada vaidosa para elevar o nosso próprio ego?
Talvez, por isso a música seja tão importante para a humanidade. Reparem que temos muitas culturas agrafas (sem escrita), mas nenhuma cultura “amusical” – sem a prática da música. Desde os esquimós, passando por aborígenes australianos e chegando a toda cultura europeia, fazer música é uma necessidade do ser humano. Através das fronteiras e da história, o ser humano é ser musical.
Diz o poeta da canção popular: “Cantar é mover o dom…” O músico cristão canta, porque ama, e ama porque foi amado primeiro. Assim, ele transborda de amor e canção. E mais do que mover o dom, é movido por ele e também nele se move. O amor perfeito, esse dom que é o próprio Deus, torna todo cantor e sua vida um canto de amor.